O QUE VOCÊ SABE SOBRE O AMOR?



Os filmes que se escolhe para assistir numa noite de solitude, o livro que fisga os olhos na prateleira, o sertanejo apaixonado ou aquela clássica MPB que se ouve no carro... mas, sobretudo, nossas escolhas e expectativas no âmbito do amor, dizem bastante sobre nós.
É provável que poucos sejam aqueles que não nutriram em algum momento da vida algum tipo de expectativa romântica, desenhando conforme suas experiências, e também conforme o discurso sobre o amor veiculado pelos romances, a imagem de uma companhia ideal. E poucos são também aqueles que conseguem transpor a tendência geral de padronizar aspectos físicos e inclusive psicológicos - que separam de um lado candidatos em potencial para ocupar o lugar de "metade", e de outro aqueles que "nem pensar" - vencendo a inclinação à fantasia.
Se traçarmos um paralelo entre as estórias de amor registradas ao longo dos séculos, poderemos nos deparar com o que se poderia chamar uma História do Amor. Essa é a história que se fragmenta em milhares de livros e filmes que nos influenciam desde a infância. Mas é também, na verdade, um registro histórico que mais trata da ideação romântica do que, de fato, das relações amorosas. Dessas relações, as que ocorrem no campo do real, não se tem uma História e, sobre o que não há registro, é comum que pouco se possa compreender e, principalmente, definir.
Talvez resida aí um dos fatores que transformam o amor em algo tão indefinível, que escapa muitas vezes ao campo da linguagem. Até porque, comparado ao que acontece nos cinemas e nos livros, é comum que algumas pessoas sintam que jamais encontraram ou encontrarão o tal amor.
Ocorre, dessa forma, um imaginário que faz a fusão entre o sentimento amoroso com o ideário romântico, quando estes não são a mesma coisa. Vale a pena refletir, nesse ponto, que nosso tamanho interesse por ouvir e dizer sobre esse tema acaba por nos fazer incorrer no risco do fascínio pelo discurso sobre o amor, ocasionando a construção e manutenção de expectativas tão românticas que acabam por brigar com a atual possibilidade de encontro. Não é de se espantar que o maior tema de canções, filmes e desabafos sofra recorrentes generalizações, metonimizações, hiperbolizações.
O grande desencontro que tem marcado as relações amorosas encontra assim uma das muitas explicações possíveis: o descompasso entre dinâmica das relações nos dias de hoje e a resistência de um romantismo por vezes caduco (e caduco porque homens e mulheres já não são mais os mesmos do final do século dezoito). Um aspecto relevante ainda é que, ao definirmos nosso objetos amorosos/românticos, é comum que ainda nos utilizemos de palavras que traduzem conceitos que já sofreram transformações, o que termina por reforçar fantasias que não suprem a complexidade que reside em relacionar-se com alguém na pós-modernidade. A título de exemplo raso, continuamos a classificar as pessoas em: "príncipes", "princesas", "heróis", "bruxas".
Para além das influências da escola romântica, que não devem ser desconsideradas, há ainda implicações de outras ordens, que se referem às singularidades presentes nas nossas histórias de vida, modelos de relações que testemunhamos e recursos emocionais que construímos para lidar com o mundo. Todos esses fatores influenciam os nossos desejos amorosos.
Existe uma grande tendência a estabelecermos requisitos para amar alguém, justamente porque normalmente é aceita a ideia de que o amor é algo que independe do "sentente" (um maravilhoso termo cunhado por Guimarães Rosa para se referir a quem sente algo, justamente porque sugere ação, e que difere de "sentidor"). Sentir amor pressupõe disposição, abertura, transposição de determinados mecanismos de defesa (estes que são construídos e reforçados com bases nos tantos fatores mencionados), e a aceitação da responsabilidade por se abrir a um sentimento que requer nutrição, clareza e bom senso. É, bom senso!
A deposição de expectativas estratosféricas no outro diz sobre nós. E diz que nossos anseios podem se relacionar, por exemplo, à delegação de responsabilidades que são singulares, inerentes a cada um. E diz ainda sobre nossas tendências ao auto-engano, por meio de exigências absurdas ou de nossas fugas.
Pensar o amor no tempo presente significa dizer que o amor pede agora novas ferramentas emocionais do ser amante, porque acontece noutro espectro. Acontece no espectro em que a dependência (seja de que ordem for) não é mais a única possibilidade de laço; no espectro em que, apesar da falta de tempo imposta a todos nós pelo século vigente, a manutenção do amor ainda pede cuidados diários, e que são tão possíveis porque dizem justamente de coisas pequenas, e não probatórias ou mirabolantes.
Na medida em que o amor for visto e aceito como um sentimento singelo, será mais leve carregá-lo junto ao peito. E aqui vale citar Mia Couto, quando diz: "grandes palavras escondem grandes enganos". Na medida em nos despojamos de fantasias de ordem secular, poderemos nos aproximar da possibilidade real de fazer uma ponte com alguém. E uma ponte é sempre o que une dois "terrenos" diferentes, individuais, em mesma uma sintonia e que demanda construção e manutenção. A realidade tem demonstrado que, enquanto ponte, o amor é feito de matéria permeável às intemperanças, mas que, com o devido cuidado e perseverança, pode atravessar esse quase século que resume a estória de alguém.
A falha é humana, e não só é humana, como compõe o humano, e a idealização já não encontra mais terreno onde ser semeada. A idealização, na verdade, não é justa com o outro. Há uma música composta por Herbert Vianna e João Barone, de nome Esqueça O Que Te Disseram Sobre O Amor, que diz: "Esqueça o que te disseram/ sobre casa, filhos e televisão/ É preciso sangue frio pra ver/ Que o sangue é quente/ Esqueça a regra e a exceção/ é mais real, cru e fascinante."
É claro que nossas representações estão presas a bases bastante resistentes, mas é sinal de crescimento a aceitação de que a realidade frustra algumas das expectativas que assimilamos ao longo da vida, e necessário analisar o quanto estas mesmas expectativas conversam com a realidade que se apresenta. Ou correremos o risco de passar a vida toda buscando o que, por ventura, já encontramos. Na história do amor, o amor é o que aprecia o livro, e não o que mora nele.


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POR TATIANE CRIS NUNES

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